Trauma e Choque: O Dilema RePHILL
RESENHA ARTIGO RePHILL – Resuscitation with blood products in patients with trauma-related haemorrhagic Shock receiving prehospital care (RePHILL): a multicentre, open-label, randomised, controlled, phase 3 trial.
Um dos temas mais discutidos entre os operadores do atendimento médico pré-hospitalar é a ressuscitação volêmica no trauma, especialmente com o uso de hemoderivados. Porém vários são os gargalos que impedem que esta prática se torne mais aplicável neste cenário, considerando a ampla desigualdade que vigora em nosso sistema de saúde brasileiro entre todas as regiões do país. Estudos de qualidade, neste sentido, podem alavancar esta modalidade de tratamento, caso se prove eficaz.
O estudo que vamos analisar traz o seguinte questionamento:
A transfusão usando PRBC-LyoPlas pré-hospitalar é mais eficaz na ressuscitação de pacientes com choque hemorrágico secundário ao trauma quando comparada com a ressuscitação padrão (cristalóide)?
OBSERVAÇÃO: PRBC-Lyoplas refere-se a uma estratégia de ressuscitação usando plasma liofilizado (Lyoplas) e concentrado de hemácias (CH) em pacientes com trauma e choque hemorrágico.
Trata-se de um ensaio clínico randomizado, aberto, multicêntrico (quatro serviços de atendimento pré-hospitalar do Reino Unido) com potência estimada em 80% para detectar 10% de diferença entre os grupos (com um número de 490 pacientes).
Foram incluídos pacientes com choque hemorrágico entre 2016 e 2021, com idade > 16 anos, história de lesão traumática, atendido pelos serviços pré-hospitalares, com PAS < 90 mmHg ou ausência de pulso radial. Foram excluídos da amostra as crianças e gestantes (conhecidas ou que apresentam sinais de gestação), pacientes que haviam recebido hemoderivados antes da randomização, pacientes que se recusaram a receber esta modalidade de terapia (ou Testemunha de Jeová), pacientes com TCE isolado sem evidência de choque hemorrágico, PCR antes da chegada da equipe médica, participantes sabidamente privados de liberdade.
A intervenção foi 4 unidades e hemoderivados, sendo 2 de concentrado de hemácias (CH) e 2 de plasma liofilizado até chegar no hospital ou PAS > 90mmHg ou pulso radial palpável. Como controle, 4 bolus de 250ml de SF 0,9%, também até chegar no hospital ou PAS > 90mmHg ou pulso radial palpável.
O desfecho primário analisado foi um composto entre episódio de morte (do trauma até a alta) ou falha em atingir clearance de lactato (<20% por hora nas primeiras 2 horas depois da randomização) ou os dois.
O trabalhou não mostrou diferença significativa entre os grupos quanto ao desfecho primário (p=0,86). Os autores concluem que a ressuscitação com hemoderivados a nível pré-hospitalar não foi superior à estratégia convencional em adultos com choque hemorrágico por trauma.
Em nossa opinião, o artigo traz informações importantes para a nossa prática médica. É indiscutível que tempo é vida quando falamos de perfusão tecidual. Quanto menor o tempo em que o paciente permanecer no estado de hipoperfusão, maior será a sua sobrevida, com menos morbidade. Portanto, a rápida ressuscitação hemodinâmica e a reposição daquilo que se perdeu (sangue, no choque hemorrágico), parece ser o mais “fisiológico” e natural. O tema ainda é um desafio na medicina, com trabalhos anteriores como PAMPER e COMBAT apresentando resultados conflitantes (utilizaram plasma fresco ao invés de liofilizado). Vários são os fatores que podem ter contribuído para o resultado obtido, como por exemplo a análise do clearance de lactato, que não parece haver consenso de que este seja um marcador fidedigno de resposta clínica. Além disso, a concentração de lactato presente dos hemoderivados pode ter influenciado o resultado. O estudo não atingiu o número de pacientes que foram planejados, o que pode ter contribuído negativamente no desfecho primário.
Considerando a atual conjuntura do sistema de atendimento pré-hospitalar brasileiro, acreditamos que, como política pública, faltam evidências que suportem uma implementação em massa desta terapia, haja vista as dificuldades de armazenamento, transporte e escassez destes componentes. O que não diminui o interesse e expectativa que uma estratégia com uso de sangue possa causar benefícios neste contexto. Sabemos que há outros estudos, usando outros produtos e com desfechos diferentes.
Em nosso curso ATLS abordamos essa questão de forma sistemática no cenário intra-hospitalar, organizando o atendimento do paciente politraumatizado, para que todo o tratamento indicado seja corretamente ofertado.
Fonte: https://www.thelancet.com/journals/lanhae/article/PIIS2352-3026(22)00040-0/fulltext


